31.12.07

7Aparte: Recomeço


Algumas semanas se passaram desde a Primavera. Desde então tenho surgido nos arredores da cabana, apenas para encontrar a saudade de alguém que teima em não ressurgir. A floresta é o nosso único local de comunhão, pelo que me limitei a regressar lá, durante a minha busca. Mas começava a ser bastante claro que talvez ela própria não quisesse regressar a mim…
Contei o tempo que teria passado desde essa última vez. A cada semana volvida, mais um traço na nossa árvore. Como não tinha nenhuma fotografia para a recordar, tentei desenhá-la num caderno, para prolongar a imagem que tinha em memória. Mas nunca tive muito jeito para o desenho e o resultado foi uma salada de rabiscos com pouco nexo e excesso de vontade.

Doze semanas.
A cabana mostrava sinais de uso e cheiros estrangeiros povoavam-na de modo ameaçador. O tronco da árvore começava a ficar maltratado de forma irreversível, fruto da violência e desespero dos riscos com que o violava.

Presente: Trinta semanas (mais coisa, menos coisa…).
O retrato desenhado começa a parecer arte abstracta, indefinível até pelo seu criador. A cabana tem outros lençóis e o tronco da árvore já não conta traços, mas uma única lasca que eu próprio não associo à minha obra. Quem terá feito isto? Vândalos!
Cada silhueta que observo, dentro ou fora da floresta, faz-me recordá-la, não porque esteja demasiado presente, mas porque já vai longe uma lembrança precisa. Cada pessoa que se vai cruzando comigo, parece trazer consigo a chave para o meu segredo, ou o segredo da localização do meu próprio molho de chaves. Reparo agora em mais coisas do que o habitual. O som de fundo de um riacho, o cheiro da terra molhada em dia de chuva, ou o timbre de um embriagado poeta…

- Venham comigo!

Vamos tirar a fotografia de uma paisagem no Inferno!

Contemplaremos mil campos expandirem-se ad eternum

Até que percamos terra e nossas retinas colem o céu

Reencontrando essa nossa história que um dia se perdeu!


Recomeço

Num dia normal não me aproximaria de uma pessoa de discurso tão caricato e fantasista, mas os dias normais há muito que estavam dissociados da minha existência. O poeta tresandava indisfarçavelmente a álcool, exibindo numa mão uma garrafa de vinho carrascão e noutra, um amarrotado manuscrito. Ficara agora sozinho, como que ignorado por uma multidão que não ia além de um sorriso jocoso, diante do seu estranho paleio. Hesitei em seguir o fluxo do resto das pessoas e isso prendeu-lhe a atenção. Num ápice, o seu discurso passou a ser direccionado a mim, como um mágico amador a fazer o seu melhor e mais repetido truque a uma nova e desconhecida criança.

- No dia em que quisemos ser mais do que a nossa existência

Quando criámos deuses e a supra-inteligencia

Demos origem a reis, imperadores, ditadores, presidentes

Os que mandam, e desmandam; os que assistem impotentes

Num mundo fabril, na senda de uma única imagem

Fabricam-se homens em linha de montagem e sem clonagem

São pouco mais do que feras, autênticas quimeras

Metade humanos, metade nada, esferas de crateras

Luas mas sem luz, sóis mas sem suar

Embriões sem emoções, nem condições para germinar

Embriagados como eu, mas sem literal ebriedade

São oito e são oitenta, quando há números em infinidade...

São OITO!

São OITENTA!

Quando há números em infinidade...


Numa breve pausa, bebeu outro trago de forma compulsiva, desceu do seu palanque em minha direcção, e perguntou-me, já sem o tom teatral:
- E tu, meu rapaz? Que puta de número és tu?
Hesitei um pouco em responder-lhe, pelo tom com que me fez a pergunta... Mas lá dei o meu palpite:
- Neste momento? Julgo-me à parte dessa escala toda, acho que devo ser um 7.
- Um 7, han? Nada mal. Nada mal mesmo, digo eu! – troçou, entre uma gargalhada.
- É verdade… Já tive melhores dias, de facto. Quer dizer, muito sinceramente, acho que me encontro no meu pior de sempre, olho para trás e qualquer lembrança que chegue traz sempre consigo um momento menos mau do que o presente. São oito e são oitenta? Anote aí um 7 para mim…
- Um 7 pois então! É original e bem melhor que a merda de um oito, ou oitenta! E é válido, porque números há uma infinidade. É como uma casa, um mundo. Podes viver num sítio grandioso, que haverá sempre maior, podes ter um belo quintal com árvores plantadas, que algures haverá sempre mais terra e mais sementes, tanta terra, digo eu! Infinita…! – exclamou, contemplando o vago céu. – Anda daí rapaz! Vou mostrar-te um sítio diferente.
- Agora?
- Sim, é aqui pertinho, digo eu. Anda!
Hesitante uma vez mais, acabei por segui-lo, por entre os trilhos da floresta, sem saber muito bem por onde caminhava.

Uma hora mais tarde, no fim da floresta…

- Estamos a chegar, daqui já vejo os portões de saída da floresta. Alguma vez foste para Norte?
- Não. Sempre vivi no Sul, e é por lá que cá venho. Aliás, nunca tinha vindo aqui parar, este sítio não me é minimamente familiar. O senhor entra por aqui, quando vem para a floresta?
- Hmmm… Eu não entro por lado nenhum, vivo mesmo na floresta e há muitos anos que não saio dela, nem por um dia.
- Bem! Isso torna tudo tão mais estranho… Ouvir-lhe falar de mil campos com tanto entusiasmo e saber que já não sai de cá! É estranho…
- Não saio porque o mundo diante destes portões é sujo, digo eu. E é por isso que lembrei-me de trazer-te até aqui. Poucas pessoas do Sul conhecem estas bandas, umas por ignorância, outras por cagufa! Digamos que as coisas que as terras do Norte escondem são bastante… peculiares! Já alguma vez ouviste falar de Gepetto, o criador?
- Está a falar do tipo que fez o Pinóquio, das histórias para embalar crianças…?
- O Pinóquio foi só a sua primeira criação! – interrompeu-me prontamente, usando agora um tom mais sério. – Talvez não saibas meu rapaz, mas Gepetto existe de verdade e vive nas terras por detrás deste portão. Desde o Pinóquio que ele procura formas de criar objectos e pessoas, sendo que tá-se pouco cagando para o valor que uns e outros têm! O Pinóquio deu-lhe a fama que precisava, com ela as gentes do Norte passaram a admirá-lo e a vê-lo como um exemplo; seguem-no, a si e às suas ideias cegamente, mesmo quando elas significam sacrifícios horrendos. De facto, eu cheguei a conhecer uma pequena rapariga há muitos anos atrás, que foi construída por ele! – relembrou, com um ar orgulhoso, mas nostálgico.
-Como o Pinóquio, das histórias…?
- Sim, meu rapaz, sim… Sabes, eu costumava acreditar na bondade das pessoas e perdia horas a fio a delinear planos ingénuos para mudar o mundo, só que… mudaram-me a mim primeiro. Mas como te estava a contar… conheci essa rapariga de raspão, ela passou aqui perto, do outro lado do portão, mas não chegou a entrar na floresta. A miúda caminhava muito delicadamente, e toda a sua pele parecia de vidro, juro que não minto, digo eu! Quando andava por essas terras costumava ouvir as gentes chamarem-na de Cristal. Idilicamente linda… Consta, segundo o que se diz, que Gepetto manteve-a sempre fechada num palácio porque nunca conseguiu acabar de construí-la. Faltava um coração verdadeiro para ser implantado na sua criação. E com isso, sacrificou a vida de algumas jovens, ao que se pensa, em vão…
- Isso é absurdo! Não é possível...
- Não sei, mas diz-se que há uns meses atrás mais uma jovem que vivia perto da floresta, nas zonas mais sulistas, desapareceu sem deixar rasto. Soubeste de alguma coisa?

Silêncio sepulcral. O meu pensamento ficou estático, a minha boca gélida. Só podia ser a minha prima… Tinha de ser ela!
Um misto de esperança e terror invadiu-me em seguida. Sim, pela primeira vez em muita tempo tinha uma pista minimamente palpável… Mas se a história que aquele desgraçado me estava a contar fosse verdadeira e se se tratasse dela, será que entretanto não a teriam magoado?
O meu mundo revelava-se fértil em personagens estranhas e trágicas: uma amante desaparecida e um poeta livre refugiado numa gaiola. E uma tal de Cristal, pele de vidro, criatura inacabada nas mãos de uma outra criatura, bem mais literal. Gepetto…
- Poeta! Sabes onde fica esse palácio…?
- Não é muito distante daqui, talvez meio-dia a pé se fores sempre para Norte, digo eu. Pergunta a quem vires pelo Palácio de Cristal…
- Mas toda a gente no Norte conhece essa Cristal?
- Hum… Não percebeste rapaz… O próprio palácio é feito de cristal. – revelou-me, num tom misterioso.

Quanto a mim, tinha ganho um novo alento. Por mais estranho que pareça, o poeta parecia saber de antemão que eu partiria para as terras do Norte, se me trouxesse até cá. Parecia sabê-lo desde que lhe disse o meu número, como se me tivesse distinguido do meio de uma multidão – o convidado mais aguardado de uma festa com mesa posta há longas primaveras…
Segui para os portões, rumo ao Palácio de Cristal. Invadido por uma tranquilidade anestésica, pelo menos em comparação com os tempos que vinha vivendo. Parábola, é o que eles chamam. Pois a minha curva descendente acabara…

- Foi um prazer falar consigo, poeta.
- Ora essa, o prazer foi todo meu! Desejo-te boa sorte e que encontres aquilo que procuras, meu rapaz! Por cá, ficarei na minha floresta, mas compreendo-te. É preciso conhecer o lodo que o mundo tem para depois dar valor aos pequenos prazeres da vida… como isto! – disse, abrindo de mansinho a garrafa.
- Vou lembrar-me disso! Ah! E já agora… Eu dei-lhe o meu palpite para um número… Pode-me dizer o seu, só por curiosidade?
Ele sorriu, olhou para o céu durante uns instantes e por fim para mim …
- 1, meu rapaz. Um, digo eu!

Parti, sorrindo também, ouvindo de fundo a voz teatral do poeta, entoando novamente o poema do seu manuscrito, cada vez mais distante, mais distante e mais distante…

- Venham comigo!

Vamos tirar a fotografia de uma paisagem no Inferno!

Contemplaremos mil campos expandirem-se ad eternum

Até que percamos terra e nossas retinas colem o céu

Reencontrando essa nossa história que um dia se …

4 comentários:

Anónimo disse...

Olá! qual seu e-mail de contato? abraço - crisbull@gmail.com

Anónimo disse...

tu abusas tanto a escrever...
continua continua continua.

Anónimo disse...

Estou fascinado

Pedro Dias disse...

Estou fascinado