O Figurante

A noite amadurece. Estás sentado e a conversa já vai longa. Nela participam irmãos, amigos e desconhecidos, que vão passar a amigos. Graceja-se sobre isto e aquilo, quando uma gargalhada colectiva te surpreende. Não ficas atrás e juntas os teus grunhidos ao coro de vozes. Antecipas a próxima piada e o próximo trocadilho, mas guarda-los para ti mesmo. Em contagem decrescente, o teu cérebro espera a inevitável confirmação da piada fora de tempo e contada por outrem, com a graça de quem pode e não de quem quer.
Sentes o tempo fugir-te depressa e pensas nisso. Apercebes-te, no entanto, que o momento que estás a viver é tão igual a qualquer outro que viveste, que vives, ou que viverás.
Alguém pega numa guitarra e ensaia uns acordes. Tu pensas que gostavas de saber tocar alguma coisa; vêm-te à lembrança infinitas tardes em que nada fizeste, pelo menos que fosse palpável ou transmissível. Se ao menos soubesses cantar, ou até mesmo assobiar...
Hoje és um mudo numa multidão falante, és um figurante. Encostas-te para trás e contemplas o céu, com essa tua expressão nula. Pensas que pensas demais. Pensas que este era um daqueles momentos em que definitivamente não devias pensar. Fechas os olhos e partes...
Vais em busca de ti mesmo, ou de um local onde existas. Sonhas com a utópica guitarra e com uma voz tão afinada que te leva aos píncaros da fama e glória. Sonhas e imaginas-te com mais centímetros, com o cabelo que sempre quiseste e a tatuagem que nunca pudeste fazer. Sonhas com a mulher que amas secretamente e sonhas que deixaste de ter segredos...
Sentes a claridade surgir e já não ouves a música que te embalara. Sentes as pálpebras pesadas implorando-te que as deixes estendidas. Sentes alguém fazer do teu peito almofada. Mas é antes essa cabeça que em ti poisa com a sua pele e cabelos, a tua almofada.
Sorris de uma forma sincera.
Abres os olhos e cantas a tua música, desafinado...