7.3.07

7Aparte: Sem Casa Nem Campa



Uma noite. Como todas as outras em que casa perde o seu significado. Como todas as outras em que eu próprio me perco, nos cantos e recantos de uma floresta.
Sempre olhei para estas árvores com um misto de medo e fascínio. Talvez por saber que os anos que me prometem não chegarão para palmilhar toda a floresta. E ainda assim, sempre a caminhei, como uma criança que se afasta da costa de uma praia, afogando-se rumo a um infinito findável, aos olhos dos seus braços, pernas e de todo o corpo, excepto dos seus próprios olhos.
E num desses olhares, nasceu a história dos 7Aparte.


Sem Casa Nem Campa


Numa clareira, ao claro abandono de vida, encontrei-o encostado a uma árvore secular, a observar o absoluto nada. Segurava um trevo de quatro redondas folhas, vivas no mais floral dos verdes, totalmente dissonante com o tom mortiço da sua pele ou a magreza dos seus dedos. Olhei-o, no fundo dos seus olhos negros, à procura de uma comunicação.
- Está frio por aqui! – atirei, na primeira oportunidade.
- Talvez esteja. Mas eu não o sinto.
- E não sentes porque não podes, ou porque só sentes aquilo que queres?
- Nada posso sentir, pelo que não tenho o que querer.
- Nada?
- Nada...
E fez-se silêncio, total. Absoluto.
Nunca fui pródigo em matéria de conversação, mas esta figura fez-me parecer um mestre. Já o tinha visto ultimamente por aquelas bandas, sempre com o mesmo ar fascinantemente intrigante e irritantemente indefinido. Chamam-lhe Fantasma e há quem realmente acredite que, de facto, o sangue não lhe corre nas veias. Eu cá, não vou nessas histórias. Se na verdade ele realmente estivesse morto, não teria então todos os motivos para estar feliz, na consciência da sua existência eterna?... Foi justamente por esse lado que me reaproximei.
- Dizem por aí que já não vives. Se assim é, conta-me: como é estar morto? Já sei que não sentes, mas... respiras? Dormes? Sonhas?
- Nada. E estar morto é precisamente isso: nada, se considerares a vida tudo. É não ter tudo aquilo que tens agora; é não sentir, se sentir rimar com viver e for seu sinónimo.
- Isso quer dizer que não podes voltar a viver algo que viveste em vida?
- Exacto. Não consigo reviver momentos ou tornar a sentir aquilo que já senti.
- Deve ser duro conseguir aguentar... Não te sentes triste ou só?
Ele parou por um segundo, fixando o olhar no trevo. Por fim, respondeu-me, sempre intransponível...
- A solidão e a tristeza fazem parte de sentimentos que vivi, pelo que não os posso voltar a viver.
- Viver... Achas que ainda vives?...
- Eu existo.
- Como todo aquele que pensa, certo?
- Como todo aquele que existe.
O futuro do nosso diálogo ficou seriamente comprometido a partir daquele instante. De certa forma, eu e o Fantasma mostrávamo-nos antagónicos; não na nossa maneira de ser, ou pensar, mas simplesmente num diálogo no qual não entravamos em sintonia, como se fosse impossível uma concordância entre nós, como dia e noite, ou um homem e a sua sombra. E qual de nós seria a sombra? Ou mais importante: qual de nós seria o homem?
A noite é que já ia longa. E ele sempre no mesmo sítio, na mesma posição e muito provavelmente com a mesma expressão nula de há muito. Desde quando? Estaria ele na companhia daquela árvore há horas? Há dias? Decidi então encostar-me no lado oposto ao que ele estava, e sentei-me na relva fria. Dialogaria agora como ele, para equalizar os graves da nossa música, tocada em forma de diálogo assíncrono. Arranquei o primeiro trevo que encontrei e tudo! Seis folhas...
Mas se eu quisesse falar como um fantasma, teria de agir como um. Para isso não bastava sentar-me como ele, ter a expressão dele, ou segurar inutilmente um trevo como ele. Tal como ele, teria também de não fazer perguntas e de dar escassas respostas. E com isso percebi que a nossa conversa tinha chegado ao fim. Aqui estávamos nós, na mesma árvore, mas sem tocar-nos, ou sequer ver-nos, olhando para campos de visão opostos e caminhando no pensamento por esses mesmos campos. Como num duelo, mas sem o retorno, e de pistolas descarregadas. Num piscar de olhos adormeci.

De manhã, despertei com a cara molestada por um sol que já ia alto. Levantei-me e vi que no outro lado da árvore já só restava o trevo de quatro folhas. Comecei a caminhar rumo aos campos que de noite imaginei. O Fantasma desaparecera. E o que restava mais parecido com ele era a sombra que agora me acompanhava.

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