O Choro de Deus

(clicar para aumentar)

Quem não sonha com a fama? Apenas aqueles que se contentaríam com o reconhecimento...

Pois é, na sociedade em que crescemos e vivemos, um estímulo a que facilmente acedemos é essa incessante e inadiável procura da vitória interior aos olhos exteriores. Somos bombardeados por noções estereotipadas de casos de sucesso da vida, de pessoas que não falharam, falharam pouco ou falharam mesmo mas estão no local certo à hora certa. O termo VIP (Very Important Person) é mais um estrangeirismo que importámos, para além de todo aquele "american lifestyle" que muita gente gosta de dizer que é feio mas adopta em proporções de dependência megalómana. A revista XX fala-nos acerca da vida de "exemplos de mulher". A revista XY chama a concorrente de fútil e pinta as suas páginas com roupas caras, carros topo de gama e corpos de... "exemplos de mulher"! No fim, é tudo farinha do mesmo saco e só não vê isso quem gosta da comichão que a poeira faz nos olhos. Afinal de contas, para quê ser paciente e tentar ensinar com falinhas mansas adolescentes quando se pode berrar num microfone e ainda ser louvado por... adolescentes? Para quê tentar construir lares, curar doenças, quando fazendo uns truques com uma bola se pode ter mais poder, dinheiro e influências que um primeiro-ministro?

Este é o raciocínio mais frequente, é ele que originou a situação em si e o texto que aqui escrevo. E pegando no último "sonho americano" (embora nos EUA sejam outros os desportos...) vou comentar a personagem deste meu texto: Pelé. Embora as últimas linhas pudessem induzir outra coisa, também eu, que aqui critico, sem rodeios, os podres ocidentais, não tenho pudor em reconhecer, como ocidental que sou, que muito daquilo que me move "é cá do burgo". Por outras palavras: sou fanático por futebol. Futebol esse, que se juntou a outra das minhas grandes paixões - o cinema - e trouxe-nos o excelente documentário Pelé Eterno, de Aníbal Massaiani Neto. Os aficcionados, como eu, do desporto-rei sabem que Pelé foi um astro, capaz de fazer coisas lindíssimas com uma bola de futebol, de mover multidões em seu torno e em torno da modelidade como nunca, até hoje, algum atleta conseguiu mover. Para quem não sabe, Pelé é a figura pública mais conhecida em todo o mundo, que fala a língua de Camões (certamente) e possivelmente a figura pública mais conhecida mesmo em todo o mundo não lusófono. No meio de tanta magia que o filme mostrou em duas horas, o que melhor reti, contudo, foram as imagens que precedem este texto. É um lugar comum dizer-se isto, mas de facto há imagens que valem (bem) mais do que mil palavras. A cena em que se inserem dá-se nos últimos minutos do filme, e após hora e meia de glória de uma ascenção imparável, chocamos agora com a irremediável fatalidade de uma estrela cadente. Nunca decadente, no caso de Pelé, é certo, mas nem por isso se torna menos triste e doloroso. Aquele Deus que nos fez sorrir, durante hora e meia, deixando os mais cépticos e menos sonhadores com uma pontinha de inveja, estímula-nos agora a pena. E conduz-nos à constatação daquilo que só não era óbvio para quem nos seus golos sonhava: Pelé subiu tão alto que por menor que fosse a altura da sua queda, o estrondo sería sempre enorme... No nosso coração, mas acima acima de tudo, no coração dele, que chora convulsivamente ao ouvir os seus ex-colegas - outrém atletas de topo e "campeões", hoje, velhos barrigudos - lhe desejarem um "até sempre", envolto de lembranças de um tempo que lhe é impossível de retroceder, que lhe é impossível tornar a viver...

Pelé foi a personificação do sonho, foi o que todos nós no nosso íntimo mais profundo, pelo menos uma vez na vida, desejámos ser. Eu, por mim e à minha maneira, ainda sonho, mas aquele choro fez-me entender que tanta e tanta coisa não estava bem entendida...