14.10.05

O Monstro

Posted by Picasa


Não olhes jamais para os olhos de um monstro, pois tornar-te-às como ele.


O cheiro que brotava dos seus poros fazia-se sentir omnipresente no ar, a sala adquirira uma figura turva, como se as próprias paredes pudessem farejar o aroma nauseabundo. Um julgamento, igual a tantos outros? Nem à primeira vista! Tamanha criatura atraíra plateias desta e de outras paragens, não gerando um pingo de dó ou piedade, sequer a um advogado de defesa. Ao largo da sala, aglomeravam-se justiceiros instantâneos, munidos de paus e pedras, prontos a serem arremessados a outros alvos que não a flora e a microfauna. Habitualmente, num julgamento, o réu é indiciado pelo seu nome; neste, todavia, o juiz presente não encontrou forma de substituir o nome pelo qual a criatura era unicamente conhecida...
- Pode-se levantar, o Monstro! – ordenou, enquanto crónicos barulhentos ensaiavam silêncios que lhes eram desconhecidos. – O réu é acusado de cinco crimes, quatro de roubo e um de homicídio. Sob a alçada do código e das leis vigentes neste reino, no caso de se considerar o réu culpado num caso desta gravidade, será aplicada a pena máxima de execução. É-lhe concedida agora a oportunidade de se defender, perante o tribunal, dos crimes de roubo de que é acusado!
Num movimento sincronizado, todos os presentes olharam o Monstro. Exibia marcas de tortura e o sangue escorria-lhe pelo peito, como o suor de quem se cansa por gosto, e pela cara, como as lágrimas de quem chora males que um dia acabam. Olhava para o chão mas parecia fitar o infinito, trespassando crostas, mantos e núcleos; olhava tão fundo que chegava a ver o céu. A voz sempre fora secreta; também hoje não se lhe ouviu uma única palavra. E diante de cenário tão estático, um guarda chicoteou-lhe as costas, qual disciplinador exemplar, paladino do bem e da moral e justiça.
- Bata-lhe duas vezes, pois ele não sente a dor humana! – atirou um dos presentes. O pedido foi prontamente acedido e o espancamento redobrou. A resposta continuou ausente, assim como qualquer esgar de dor, tristeza ou qualquer outra reacção humana. E o julgamento prosseguiu...
- Está a tornar as coisas mais difíceis para si. Ser-lhe-à dada, ainda assim, a oportunidade para se defender perante este tribunal, do crime de homicídio do qual é acusado. O que é que tem a dizer em sua defesa?
Uma vez mais, o foco no Monstro, na sua pele imunda, de marcas, cicatrizes e rugas de nascença. Parecia entretido com o seu vago olhar, mas sem sorrisos, nem felicidade, ou qualquer outra reacção humana. Contaria agora luas, estrelas, ou mesmo universos que se explicavam ante si, mesmo sem que ele os quisesse compreender. O mesmo guarda voltou então a castigar-lhe, desta vez com uma pancada forte na nuca. Mas nada feito... E a mesma ordem se fez ouvir:
- Bata-lhe duas vezes, pois ele não sente a dor humana!
O som do novo golpe ecoou em toda a sala, como um trovão antecipado pelo aviso de um relâmpago. Fogo de vista... O Monstro ficou no mesmo sítio e com o mesmo semblante indecifrável. À falta de uma reacção, a plateia tornou-se farta de tão decepcionante espectáculo e irada, começou a arremessar os seus paus, as suas pedras e uma série de objectos que não lhe pertenciam, mas que serviam para descarregar a fúria cega de uma turba. Indignados com tanta dor, os olhos do Monstro começaram a abandonar-lhe e em alívio cegaram. Por uma última vez, ele pôde ver os seus braços, as suas mãos, as suas pernas e os seus pés. Restando-lhe apenas os universos, contemplou o Sol, já sem receio de cegar...
- Declaro o réu culpado! – gritou o juiz, furioso, sedento de sangue infiel. Enquanto uma ovação crescia e a satisfação ia tomando a plateia de assalto, o guarda perfurou o peito do Monstro com a lâmina da sua espada, por entre gritos de êxtase da multidão. E ao ver que ele não sucumbia, o juiz ordenou:
- Mate-lhe duas vezes, pois ele não sente a morte humana!


De peito esquartejado, o Monstro tombou por fim, sem nunca ter olhado nos olhos de ninguém.

3 comentários:

Anónimo disse...

A história parece-me, de algum modo, familiar.. mas está descrita deuma forma.. excelente!

Anónimo disse...

Adoro a forma como escreves, as tuas ideias, a riqueza do teu vocabulário, a beleza das metáforas, enfim... 5*
Nest caso o k brilhou msm foi a analogia! Parabéns, + 1 vez...

Anónimo disse...

A história..a maneira k a contas-te a forma com k a escreves-te..fez-me talvez viver um pouco desse momento!! Como em todos os outros teus textos k li..fikei blokeada..so mexiam os olhos!! Parabens...(*) Puderia dizer mas coisas mas já foram ditas em comentarios anteriores!! Continua..eu perco-me aki..ou encontro-me talvez zseja a palavra certa!! Beijo ** ** **